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sexta-feira, 18 de abril de 2014

Por que há uma tatuagem naquela moça? Published on 17/04/2014 by Paulo Ghiraldelli

Schopenhauer e Pascal identificaram o “eu” como um vazio. Um buraco. Um poço sem fundo. 

De fato, se olhamos para o tal “nosso interior”, nada encontramos senão um fio de memória altamente volátil construído em um vocabulário que qualquer esclerose esgarça e aniquila. Uma pitadinha de Alzheimer e … pimba! Perde-se tudo. Uma mentira do vizinho e lá se vai, sem qualquer doença, nosso eu de embrulho.

Então, voltamos para a Aristóteles, queremos uma substância. Vamos nos agarrar a uma metafísica que nos diga que somos mais que um fio de memória destrutível. Entramos na modernidade tardia ou pós-modernidade assim, tranquilos, uma vez que temos algo que permanece, nosso eu substancial. Como? Simples: batizamos o nosso corpo de eu.


Mas um corpo todo mundo tem. Como seria um eu que só fosse eu mesmo? Ah, boa ideia: vou marcar meu corpo com uma tatuagem! Aí saberei que eu sou eu – aquele eu tatuado. E eis então que tatuo algo que não tem nenhum significado especial, pois ser eu não é especial, é nada. Schopenhauer e Pascal chutados porta afora voltam pela janela mostrando a língua!

tatto manProcuro desesperadamente tatuar outra coisa, algo “mais eu”. Ou, na linguagem pré-adolescente que muitas mulheres nunca perdem: “algo que seja mais eu, né?”. Quero ser uma caixa semântica ambulante para outros e para mim. Meu corpo tem a obrigação de ser um eu. Descubro então que a cada tatuagem o que consigo mostrar é que a semântica não é um campo confiável. O significado de ontem era mais volátil que o de hoje e sucessivamente. O próprio sol incidindo na tatuagem dá conta de me fazer esquecer o quanto a primeira tatuagem já era vazia, mas o esquecimento não aplaca a minha confusão e meu desejo vago de ver se dá certo meu plano de fazer o corpo ser o eu.

A tatuagem do marinheiro dizia de sua aventura e amores. Ele era um marinheiro porque tinha o que contar na tatuagem. Amores e sereias. Ilhas distantes e navios fantasmas. Piratas e porta-aviões. Nós nem navio e aventuras temos. Podemos tatuar o que for. Não teremos o “eu” de volta. Pois somos os que vivem em uma época de vazio do eu, de semântica de tolos e de marinheiros sem mar.

Popeye se sentiria ridículo em uma sociedade como a nossa, em que ninguém tem uma âncora tatuada no braço.

© 2014 Paulo Ghiraldelli, 56, filósofo.
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