Páginas

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Casa Arrumada



Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

Casa arrumada é assim:
Um lugar organizado, limpo, com espaço livre pra circulação e uma boa entrada de luz.
Mas casa, pra mim, tem que ser casa e não um centro cirúrgico, um cenário de novela.
Tem gente que gasta muito tempo limpando, esterilizando, ajeitando os móveis, afofando as almofadas...
Não, eu prefiro viver numa casa onde eu bato o olho e percebo logo: Aqui tem vida...
Casa com vida, pra mim, é aquela em que os livros saem das prateleiras e os enfeites brincam de trocar de lugar.
Casa com vida tem fogão gasto pelo uso, pelo abuso das refeições fartas, que chamam todo mundo pra mesa da cozinha.
Sofá sem mancha?
Tapete sem fio puxado?
Mesa sem marca de copo?
Tá na cara que é casa sem festa.
E se o piso não tem arranhão, é porque ali ninguém dança.
Casa com vida, pra mim, tem banheiro com vapor perfumado no meio da tarde.
Tem gaveta de entulho, daquelas que a gente guarda barbante,
passaporte e vela de aniversário, tudo junto...
Casa com vida é aquela em que a gente entra e se sente bem-vinda.
A que está sempre pronta pros amigos, filhos...
Netos, pros vizinhos...
E nos quartos, se possível, tem lençóis revirados por gente que brinca ou namora a qualquer hora do dia. Casa com vida é aquela que a gente arruma pra ficar com a cara da gente.

Arrume a sua casa todos os dias...
Mas arrume de um jeito que lhe sobre tempo pra viver nela...
E reconhecer nela o seu lugar.




quarta-feira, 13 de julho de 2011

Renunciar ao apego, não ao mundo



Como um seguidor de Sidarta [Buda], você não precisa imitar cada ação dele — não precisa fugir enquanto sua esposa está dormindo. Muitas pessoas pensam que o budismo é sinônimo de renúncia, deixar a casa, família e emprego para trás para seguir o caminho de um asceta.
Essa imagem de austeridade se deve em parte ao fato de que muitos budistas reverenciam os que mendigam, nos textos e ensinamentos budistas, assim como cristãos admiram São Francisco de Assis. Não podemos deixar de nos comover com a imagem de Buda andando descalço em Magadha com sua tigela de mendigar, ou Milarepa em sua caverna vivendo de sopa de urtigas. A serenidade de um simples monge birmanês aceitando esmolas cativa nossa imaginação.
Mas há também um tipo totalmente diferente de seguidor de Buda: o Rei Ashoka, por exemplo, que desceu de sua carruagem real, adornado com pérolas e ouro, e proclamou seu desejo de disseminar o Buda Dharma pelo mundo. Ele ajoelhou, pegou um punhado de areia, e jurou que construiria tantas estupas quanto havia grãos de areia em sua mão. E, de fato, cumpriu a promessa.
Então, a pessoa pode ser um rei, comerciante, prostituta, viciado ou presidente de empresa e ainda assim aceitar os quatro selos*. Fundamentalmente, não é o ato de deixar o mundo material para trás que budistas valorizam, mas a habilidade de ver o apego habitual a este mundo e a nós mesmos e renunciar ao apego.
* quatro selos:
Todas as coisas compostas são impermanentes
Todas as emoções são dolorosas
Todas as coisas não têm existência própria
O nirvana está além dos conceitos

Psicologia Dialética: Simbiose no casamento


Simbiose no casamento

Adriana Tanese Nogueira

A simbiose é um conceito que pertence à biologia, e denota a associação entre dois seres que beneficia a ambos; melhor, ambos seres precisam de tal associação para continuarem vivos e produtivos. Já dá para entender como esse conceito é transportado para as relações de casal: os dois não conseguem viver um sem o outro. 

Vamos começar fazendo algumas distinções. Toda relação se constrói a partir de uma "troca" que pode parecer e, muitas vezes, é simbiótica: pais e filhos, amigos, casais e até empresas, grupos e assim em diante. Se estamos num relacionamento é porque ele nos dá algo de importante. Que esse "algo" nem sempre seja saudável são outros quinhentos. Para o sistema mental da pessoa, para seus hábitos, medos e limites, a vantagem se apresenta de alguma forma como superior aos riscos que uma possível mudança traria.
Na relação entre pais e filhos, onde aparentemente, os filhos são os que ganham mais, é bom lembrar do espaço gigantesco que estes ocupam na vida e no coração de seus pais. Além de responsabilidades e problemas, crianças oportunizam adultos que, talvez nunca teriam essa chance, de se sentirem importantes,  de estar "acima" de alguém - se amor e crescimento recíproco não fossem suficientes.

Uma segunda noção que precisamos esclarecer é a idéia de que quando se ama de verdade se tende a "não poder viver sem a outra pessoa". A atração sexual ou aquela íntima e profunda cria uma tamanha sinergia de forças que duas pessoas podem superar muitos obstáculos para estarem juntas. Por outro lado, porém, faz parte das qualidades do amor dar a força para aguentar a distância, quando ela for necessária. Distanciamento físico ou emocional podem marcar alguns momentos da relação amorosa. Porque ninguém é pronto e resolvido e  porque a vida é imperfeita, amar não equivale a ter sempre momentos agradáveis e cheios de compreensão recíproca. Portanto, o "não posso viver sem você" do pique do amor romântico é um modo de dizer que tem valor num plano simbólico, enquanto que no concreto deve fazer lugar à maduridade de saber lidar com altos e baixos e com as contradições.

O casamento simbiótico é algo diferente. Ele é o resultado, geralmente, da união entre duas pessoas durante sua juventude, quando sua referência à família de origem e, sobretudo, às feridas e faltas que esta lhes deixou estão ainda fortemente gravadas na alma, gerando anseio por preenchimento. Os pombinhos inicialmente tendem a repetir o padrão mamãe-papai, prova é que há casais que chamam uns aos outros "filho" e "filha". Se o padrão de base das relaçãoes entre homens e mulheres é o do pai-filha e o da mãe-filho, nos casais simbióticos esse modelo é levado ao extremo, e literalmente os dois não sabem estar sem o outro. Falta-lhe autonomia e independência.

A ausência de autonomia é a incapacidade de realizar atividades próprias à personalidade de cada um, e tomar escolhas que dizem respeito aos gostos de cada indivíduo. A individualidade lentamente se eclipsa e os dois formam um todo informe no qual não se distingue mais quem é quem. Se a autonmia é a capacidade de fazer coisas sozinhos, independência é aquela de ter iniciativa por si próprios. A pessoa independente não pede permissão para fazer o que sente vontade e é importante para ela. Ela própria se autoriza, seguindo seus instintos e pensamentos. No casal simbiótico, esses dois aspectos essenciais para o desenvolvimento saudável do ser humano se perdem, ou são sufocados.

O casal simbiótico é como um indivíduo com duas cabeças mas um corpo só. Mentalmente, eles continuam se sentindo diferentes um do outro, sabem reconhecer perfeitamente as falhas e qualidades de cada um, os hábitos e preferências. Mas, por baixo dessa camada consciente, existe o emaranhado de sentimentos inconscientes que eles partilham e os amarram.

O nó da meada é que eles sua união é funcional à cada um conseguir ir adiante na vida. Psicologicamente falando, uma série de projeções foi realizada sobre o outro, investindo não só sua função (por ex., trazer dinheiro para casa ou cuidar da casa), mas um nível mais profundo. O outro representa um pedaço de si, ou vários pedaços de si, ocupando um lugar tamanho e de tal relevo na vida psicológica da pessoa que, no bem ou no mal, ela não consegue fazer sem.

O problema dessa situação é que não conta com as mudanças. Apesar de tudo, a força evolutiva do ser humano é fenomenal. Nada permance igual e tudo muda. Mudamos, queiramos ou não. Mesmo numa situação psicologicamente amputada, como a do casal simbiótico, a pressão interna na direção da individuação (que implica necessariamente em maior autonomia e independência) insiste e perturba. Aquele dos dois que está "para trás", aquele no qual este processo está mais sufocado, começa a se sentir inseguro e ansioso. Aquele que está "para frente", no qual a pressão interna tem mais via livre (geralmente de forma totalmente inconsciente), sentir-se-á "sufocado" pelo modelo de relação na qual está.

A vontade interna de novas experiências vai crescendo inexoravelmente. É como um cavalo jovem, cheio de vida e relinchando, desejoso de poder galopar livre pelas pradarias. Na falta da liberdade verdadeira, que só viria evoluindo para fora desse modelo de relação, duas coisas podem ocorrer: sufoca-se mais energicamente o espírito de liberdade, inclusive com a ajuda de remédios ansiogênicos e calmantes; ou se encontra essa autonomia de forma escondida e nos espaços mais ilícitos, como traições pelos cantos, mentiras e subterfúgios.

Transformar uma situação dessa para melhor é complicado porque toda e qualquer mudança é percebida pelo casal simbiótico como ameaçadora. É como dividir gêmeos siameses, grudados pelo corpo. Há o risco da morte, que no caso do casal simbiótico é o risco de matar a relação, ou o impulso evolutivo que exige que ela seja renovada e, com ele, aniquiliar a individuação de cada um. Entretanto, adiar o processo de mudança, uma vez que as sementes já foram postas, na forma de insegurança, ansiedade, desconfiança e mentiras, promete um futuro sombrio.

O paradoxo desse tipo de relação é foi justamente graças à simbiose que ambos os indivíduos cresceram como pessoas ao ponto de sentirem agora a necessidade interior de ir além. É por causa da simbiose que hoje cada um têm condições de poder ir adiante sem ela. O tempo está maduro, é hora de virar gente grande.

Aventura Interior...: Quanto mais o sujeito tenta se aproximar de seu p...








Quanto mais o sujeito tenta se aproximar de
seu passado,
mais se afasta dele.




(freud)

Seja espontâneo


Quando age, você sempre toma por base o passado. Você vive de acordo com as experiências que acumulou, age com base nas conclusões a que chegou no passado — como pode ser espontâneo?

O passado domina e por causa dele você nem sequer consegue ver o presente. Seus olhos estão presos ao passado, a neblina do passado é tão espessa que é impossível enxergar alguma coisa. Você não consegue ver nada! Está quase cego — cego por causa da neblina, cego por causa das conclusões que tirou no passado, cego por causa do conhecimento.

O homem instruído é a criatura mais cega deste mundo. Porque ele vive com base nos conhecimentos que tem, em vez de avaliar as circunstâncias. Ele simplesmente continua vivendo mecanicamente. Aprendeu alguma coisa; isso passa a ser um mecanismo embutido dentro dele e ele age de acordo com isso.

Há aquela história bem conhecida:

Existiam dois templos no Japão, um inimigo do outro, pois sempre existiram templos ao longo das eras. Os sacerdotes desses dois templos eram tão hostis um ao outro que nem sequer se olhavam no rosto. Se se cruzassem nas ruas, simplesmente não se olhavam. Se se cruzassem na rua, paravam de conversar; havia séculos que os sacerdotes desses dois templos não se falavam.

Mas ambos tinham um garotinho — para servi-los, levar recados. Os dois sacerdotes tinham receio de que os garotos, afinal eram só garotos, pudessem ficar amigos.

Um dos sacerdotes disse ao seu menino: — Nunca se esqueça de que o outro templo é nosso inimigo. Nunca fale com o garoto do outro templo. Eles são gente perigosa... fique longe deles. Fuja deles como o diabo da cruz!

O garoto ficou curioso... porque ele já estava cansado de ouvir longos sermões. Não conseguia entendê-los. Os sacerdotes liam escrituras estranhas, ele não compreendia aquela língua; problemas profundos, existenciais, eram discutidos. Não havia ninguém com quem brincar, ninguém com quem conversar. E quando lhe diziam para não falar com o menino do outro templo, uma grande tentação brotava dentro dele. É assim que surge a tentação. Nesse dia ele não conseguiu evitar de falar com o outro menino. Quando o viu na rua, ele perguntou: — Aonde você está indo?

O outro menino era um tanto filosófico; de ouvir grandes filosofias ele ficara filosófico. Respondeu: — Indo? Não há ninguém que venha ou que vá! Isso acontece... para onde quer que o vento me leve... — Ele tinha ouvido o mestre tantas vezes que era assim que vivia um buda, como uma folha morta, seguindo ao sabor do vento. Então o menino disse: — Eu não sou nada! Não existe ninguém que faça algo, então como posso ir a algum lugar? Que bobagem é essa que você está falando? Sou uma folha morta. Vou para onde quer que o vento me leve...

O outro menino encarava-o sem entender nada. Não conseguiu sequer articular uma resposta. Não conseguia encontrar nada para dizer. Estava de fato embaraçado, envergonhado, e pensava: "Meu mestre tinha razão ao aconselhar-me a não falar com essa gente, são gente perigosa. Que conversa é essa? Só perguntei para onde ele ia. Na verdade, eu até já sabia para onde ele estava indo, pois nós dois íamos para o mercado comprar hortaliças. Bastaria dizer isso."

O menino voltou ao templo e contou ao mestre: — Me perdoe. Você me proibiu, mas eu o desobedeci. Na verdade, sua proibição aguçou minha curiosidade. Essa é a primeira vez que converso com aquela gente perigosa. Só fiz uma pergunta: "Aonde você vai?" e ele começou a dizer umas coisas estranhas: "Não existe ir nem vir... Quem vem? Quem vai? Sou o vazio absoluto", ele disse, "sou uma folha morta. E aonde quer que o vento me leve..."

O mestre disse: — Eu disse a você! Agora, amanhã fique no mesmo lugar e, quando ele passar, pergunte a ele novamente: "Aonde está indo?" Quando ele disser essas coisas, você diz simplesmente: "É verdade. Você é uma folha morta, assim como eu. Mas, quando o vento não está soprando, para onde você vai? Aonde pode ir?" Só diga isso, e ele ficará embaraçado, tem de ficar embaraçado, tem de ficar frustrado. Estamos sempre discutindo e essa gente nunca conseguiu nos vencer em nenhum debate. Então amanhã não será diferente!

O garoto acordou cedo, decorou sua resposta, repetiu-a muitas vezes antes de sair. Então ficou esperando no local onde o outro atravessaria a rua, repetindo mentalmente a resposta, ensaiando, até avistar o garoto se aproximando. Então disse: — Agora veremos!

O menino chegou mais perto e o outro perguntou: — Aonde está indo? —, com esperança de que agora ele teria sua chance...

Mas o rapazinho disse: — Aonde quer que as pernas me levem... — Não mencionou nenhum vento, não falou do vazio, nem da questão do não-fazer... E agora, o que ele faria? A resposta que decorara não ia fazer sentido. Não podia falar sobre o vento. Desacorçoado, com vergonha por ser tão burro, ele pensou: "Esse menino de fato sabe umas coisas estranhas. Agora ele disse: 'Aonde quer que minhas pernas me levem.'"

Então ele voltou a procurar o mestre. Este respondeu: — Eu disse para não falar com essa gente! Eles são perigosos! Faz séculos que sabemos disso. Mas agora é preciso fazer alguma coisa. Amanhã, você pergunta novamente: "Aonde está indo?" e, quando ele disser: "Aonde quer que minhas pernas me levem", diga a ele: "Se você não tem pernas, então...?" É preciso fazê-lo calar a boca de um jeito ou de outro.

Então, no dia seguinte, o menino perguntou outra vez onde o outro ia e esperou a resposta.

O outro disse: — Estou indo ao mercado buscar hortaliças.
As pessoas costumam viver com base no passado — e a vida continua em constante mudança. A vida não tem obrigação nenhuma de confirmar suas conclusões. É por isso que ela é tão confusa — confusa para a pessoa instruída.

A pessoa já tem todas as respostas prontas, o Bhagavad Gita, o Alcorão, a Bíblia, os Vedas. Já se abarrotou de tudo isso, sabe todas as respostas. Mas a vida nunca levanta as mesmas questões; por isso a pessoa instruída nunca acerta o alvo.

Osho, em "Consciência: A Chave Para Viver em Equilíbrio"
Imagem por ClickFlashPhotos / Nicki Varkevisser